Entrevista | Revista Cidade Nova | Por uma cultura do diálogo
Comprovar renda, entender de contratos de adesão complexos e extensos, ter o nome “limpo na praça”… são inúmeras as barreiras que acabam por excluir um grande número de pessoas do acesso ao crédito no Brasil. Para quem, nessa situação, tenta empreender, o desafio é ainda maior.
Para suprir essa demanda e dar a pessoas nessas condições a oportunidade de mudar o próprio destino por meio do acesso a crédito a baixo custo, Lemuel Simis e Fábio Tanaka fundaram a Firgun, uma plataforma de empréstimos coletivos destinada a empreendedores da periferia. Em quase dois anos, a empresa – um negócio de impacto social – já ajudou a alavancar 25 empresas da base da pirâmide econômica. Em conversa com a reportagem da Revista Cidade Nova, Lemuel Simis conta como tudo começou e o que o motivou a empreender com propósito.
Como surgiu a Firgun?
Quem fundou a Firgun foi o Fabio Takara, meu sócio, a partir de um projeto que ele começou a realizar na Fundação Estudar, de formação de jovens lideranças. Lá, ele conheceu o conceito de negócios de impacto e o trabalho do Kiva, uma plataforma de empréstimos coletivos que se tornou nossa principal fonte de inspiração. Vimos que teria espaço e oportunidade de desenvolver um projeto desses no Brasil e resolveu fazer a Firgun.
A principal diferença nossa para o Kiva é que o investimento tem rendimentos. O investidor apoia empreendedores da periferia, empreendedores que, sem a Firgun, teriam muito mais dificuldade de conseguir acessar crédito, e depois ele recebe esse dinheiro em parcelas com rendimento de até 12% ao ano. A Firgun surge de um propósito em comum entre os sócios de acreditar que, através da multiplicação de oportunidades, através do fomento ao microempreendedorismo vamos ajudar o Brasil a ser um país menos desigual.
O que significa Firgun?
Firgun é uma palavra em hebraico que não tem tradução literal para o português, mas significa o sentimento de orgulho e alegria ao presenciar as conquistas de outras pessoas, dividindo a sua própria prosperidade com os outros, com o coração puro, sem inveja, sem ciúmes. É uma espécie de empatia.
Quantos empréstimos já fizeram desde que abriram a Firgun?
Já foram 25 empréstimos, mais de R$ 200 mil emprestados e quase 250 investidores ativos na plataforma.
E que avaliação vocês fazem desse ano e meio de operação?
Temos metas mais audaciosas. A principal dificuldade nas plataformas de empréstimos entre pessoas é a seleção de bons pagadores, de bons projetos. No nosso caso, essa balança está invertida.
Hoje temos muitos projetos bons e dificuldade para financiar todos eles. Estamos em uma fase de consolidação da marca, de geração dessa confiança. Estamos nos tornando mais conhecidos e levando esse conhecimento de que existe uma maneira de se tornar investidor de impacto social com valores acessíveis. Podemos usar nosso dinheiro para promover transformação. Na Firgun, você faz um investimento e sabe exatamente o que está sendo feito com o seu dinheiro. No banco você investe em um CDB e dá o aval para o banco fazer o que ele bem entender com o seu dinheiro.
E o que é feito? Não sabemos. O CDB vence, você recebe o seu dinheiro, mas por onde esse dinheiro andou? Que projetos ele financiou? Não sabemos.
Vocês atuam em um hiato deixado pelas grandes instituições financeiras, gerado pelo temor da inadimplência. Vocês não têm esse mesmo temor?
Isso está no imaginário coletivo, mas, se você for ver os dados, a inadimplência do microcrédito é bem mais baixa do que a inadimplência comum, das outras modalidades de crédito. Eu diria que existem barreiras sociais que precisamos transpor. Existe risco com microempreendedores, mas, analisando os dados, você vê que eles são melhores pagadores do que grandes empresas.
Vocês estão constatando isso na operação que realizam?
Sim. O último dado que temos do Banco Central sobre inadimplência do microcrédito é de 2015. A taxa de inadimplência para pessoas físicas era de 5,6%. E esses dados são de 2015, então provavelmente essa inadimplência aumentou com o aumento do desemprego. Na Firgun, a taxa de inadimplência está abaixo de 1%. Estamos provando na prática que essas pessoas são boas pagadoras, inclusive pessoas com restrições no nome, que conseguem fazer empréstimos conosco e são bons pagadores. Estão honrando seus pagamentos.
Como vocês fazem a análise de risco e seleção de negócios?
Não fazemos empréstimo para qualquer pessoa que chega aqui. Ela tem que passar por um processo de avaliação e a primeira etapa é a indicação de um dos nossos parceiros. Realizamos parcerias com organizações que capacitam esses empreendedores e, de alguma forma, apoiam o desenvolvimento do empreendedor, e eles indicam quem está mais apto a tomar um empréstimo. Então começa a nossa própria análise. Esse empreendedor tem que responder um questionário de perfil financeiro, em que precisa ter uma pontuação mínima para seguir adiante. Ele pode responder o questionário pelo celular e leva de dez a 15 minutos. Ele consegue responder bem rápido. Se ele alcança essa pontuação mínima, então envia documentos que comprovam o fluxo de caixa dele. Quanto mais informação financeira tivermos, maior é a chance de esse empresário conseguir um valor alto de liberação de empréstimo. Sabemos que a burocracia é um problema para conseguir empréstimo no Brasil, então procuramos simplificar. Esses documentos podem ser desde uma planilha que esse empreendedor faz no Excel toda semana, todo dia, até fotos de um caderno de anotações, extrato da maquininha de cartão, extrato do banco, enfim… Pelo questionário, sabemos o risco que é emprestar. Na análise dos documentos, definimos o valor que podemos emprestar para esse empreendedor, porque as parcelas que ele vai pagar não podem ultrapassar 10% de sua renda familiar mensal. É uma política nossa. Assim chegamos no valor do empréstimo.
Definido o valor do empréstimo, o que é feito?
Depois disso criamos a campanha bem com cara de financiamento coletivo on-line. Enviamos um roteiro orientando como gravar o vídeo e enviar fotos e escrevemos sobre esse empreendedor para criar a campanha. O período de captação é de um mês em média, quando pessoas do Brasil inteiro podem investir nesse empreendedor valores a partir de R$ 25. Também enviamos um guia de divulgação para esse empreendedor divulgar para a própria rede dele.
Qualquer um pode ser investidor?
Qualquer um. Os empréstimos são de pessoa física para pessoa física, então qualquer um que tiver acesso à internet pode fazer, porque os investimentos acontecem como numa compra online. Você pode gerar o boleto ou pagar por cartão de crédito. Ou, se você já é um herói Firgun – assim que chamamos os investidores –, pode reinvestir o dinheiro que está recebendo de outros empréstimos.
O que acontece quando uma empresa não consegue honrar os pagamentos?
Quando acontece o empréstimo, ele assina o contrato de mútuo e, nesse contrato, são especificadas as datas de pagamento e as parcelas fixas que ele vai pagar; se ele atrasa, quanto de multa ele vai pagar… Assinamos representando os investidores e realizamos o processo de cobrança. Temos uma régua de cobrança: na semana anterior ao pagamento avisamos que o boleto foi enviado, três dias antes do vencimento avisamos que a data está chegando, no dia avisamos de novo… Temos uma linha de mensagens e lembretes para incentivar esse empreendedor a pagar, mas não tem uma garantia física. Pesquisando, percebemos que se exigíssemos uma garantia física, não iríamos emprestar para muita gente, não atingiríamos nosso grande proposito que é promover a inclusão financeira, o acesso ao microcrédito. Não tem a garantia, mas esse contrato pode ser acionado na Justiça, como um contrato de mútuo comum.
Onde vocês querem chegar nos próximos anos?
Até o final do ano, temos a meta de fazer entre R$ 750 mil e R$ 1 milhão em empréstimos. Isso representa de cem a 130 empreendedores financiados. No longo prazo, não saberia dizer valores, mas a nossa intenção é se tornar de fato uma instituição financeira que preza pela humanidade, que preza em trazer soluções financeiras de qualidade para quem mais precisa. O empréstimo é apenas uma ferramenta financeira para facilitar a vida das pessoas. Muita gente no Brasil não tem sequer uma conta bancária. Esse é um outro problema que no longo prazo visamos atacar, trazendo possibilidades e meios de pagamento mais acessíveis, para que mesmo quem não tenha conta em banco possa acessar empréstimo.
E como a Firgun ganha dinheiro?
Essa pergunta sempre recebemos. É simples. Nós retemos uma taxa administrativa do valor captado. É uma taxa que varia de zero a 10% do valor captado, dependendo do projeto. Hoje a nossa taxa média está em 8,5%. E para os empreendedores os juros são de zero a 1% ao mês, e isso se reflete no retorno para os investidores. Propomos essa mentalidade da abundância.
A Firgun é uma empresa em que, quando ela ganha, todos ganham.
Thiago Borges
é jornalista pela Faculdade Cásper Libero
e mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário Sophia.
Editor de conteúdo pela Revista Cidade Nova e Gestor do Polo Spartaco.